Se um dia, por algum motivo deixar de me lembrar, quero vir aqui… recordar!
Lembro-me dele reservado sem ser tímido. De gestos controlados sem serem premeditados. De sorriso fácil, sem dar gargalhadas. Com um tom de voz de “quase sussurro”, sem precisarmos de o ouvir.
Lembro-me dele na igreja da “terra dos meus avós”, com uma túnica simples, vermelha, quase “vinho tinto” gasto, seco…a tocar um pequeno sino, na altura em que as pessoas agradeciam a comunhão. Lembro-me dele no canto, à direita do Filho. Lembro-me da forma como posteriormente fazia tocar os sinos ( lá do alto da torre ) em ocasiões especiais, e nas mudanças horárias. Lembro-me que nos avisava que o tempo ia passando, com o orgulho de quem o podia controlar.
Lembro-me dele lá na “loja”a aviar as “freguesas”! Lembro-me do metro de madeira - que ainda hoje se encontra no mesmo local ( pousado em dois pregos encastrados e dobrados, numas prateleiras de madeira comida pelo tempo )-, com que media meticulosamente os “meios metros” de tecido, com que elas enriqueciam os enxovais das netas. Lembro-me das camisas, das batas, das calças, das boinas, dos aventais que criava, nas máquinas de costura “Singer”, que ostentam ainda hoje, o orgulho de terem sido tratadas pelas suas mãos.
Lembro-me da carrinha Toyota Corolla, azul clara, que conduzia com a precaução e estima, com que “tratava” os seus fiéis amigos. Lembro-me dela andar constantemente carregada com os produtos que ia buscar ao armazém dos “Cabaços”, e de nunca se ter queixado. Lembro-me que buzinava, sempre, nas mesmas curvas. Lembro-me que fazia sempre os mesmos trajectos. Raras vezes passou dos 60. Lembro-me de ter aprendido as primeiras letras nessa matrícula. Lembro-me de referir isso como motivo de orgulho.
Lembro-me de ir com ele às feiras nas férias. Lembro-me que estacionava milimetricamente a carrinha no espaço próprio, e de montar a bancada ( composta por uns perfis metálicos em V, e uma espécie de persianas/ripas de madeira ). Lembro-me, de nunca ter entendido onde “moravam” os artigos ( com excepção dos tapetes e dos cobertores, que pelo seu tamanho ficavam em cima de uma colcha, no chão ). Lembro-me de que a banca, tinha sempre a mesma “cara”. Lembro-me de tomar o pequeno almoço, enquanto ele colocava o dinheiro nas caixas ( 25x15 cm ) de cartão da Singer, que habitualmente albergavam os “carros de linhas” para costura. Lembro-me de ajudar a desajudar nas vendas, e de as mulheres de xaile preto lhe perguntarem se eu era filho do “Toino”. Lembro-me de fazer trocos ( só me deixava “brincar” com as moedas ), e de ali ter aprendido a somar e subtrair. Lembro-me de referir isso como motivo de orgulho.
Lembro-me de me contar histórias, cantar músicas, sentado no “banco grande”, juntos à lareira. Lembro-me que eram sempre as mesmas, mas que nunca me fartava. Lembro-me que não me deixava brincar com o lume:
“Serve para cozer nabos, e assar sardinha!”
Lembro-me que o dizia, com o orgulho de quem sabia do que falava.
Lembro-me de ter aumentado a casa por causa das exigências familiares: da nova sala, do novo quarto, da nova casa de banho. Lembro-me de juntarmos duas mesas de madeira para nos reunirmos nos almoços de família, e de ele se sentar, no topo da mesa. Lembro-me de nunca jantarmos sem a sua presença e que rezava antes de começar a comer. Lembro-me que pouco falava durante as refeições. Lembro-me que éramos muitos à mesa. E que isso era motivo de orgulho para todos.
Hoje, o meu avô já por cá não anda.
O meu avô, nunca me ouviu com clareza, porque tinha um problema grave: era surdo.
Foi o Sacristão e o Alfaiate de Pousaflores. Tinha tempo ainda para ser Feirante, Pai e cuidar de uma família com 6 filhos.
Hoje, porém, o lugar no topo da mesa não se encontra vago…é ocupado pelo meu pai.
Um dia, esse lugar terá que passar por mim. Sou o neto mais velho, e hierarquicamente esse lugar pertence-me. Era “dele”. Não sei explicar o porquê desse desejo. Não me lembro porque me lembrei …
Lembro-me no entanto, que ontem sonhei com ele, e me ouviu…mesmo!