Uma passagem rápida por coisas importantes
publicado por Mimosa, em 29.01.14 às 19:34link do post | favorito

Sendo a Música uma linguagem, torna-se evidente que nela se observarão os mesmos fenómenos, ou fenómenos correspondentes, aos observados nas outras formas tradicionais de linguagem e muito concretamente de fonologia, sintaxe e morfologia.
Simplesmente enquanto numa linguagem falada os fonemas se agregam de forma estratégica, obedecendo a critérios de semanticidade sequencial fechada e normalizada, levando à compreensão e à conclusão óbvia de juízos de valor quantitativo e qualitativo e à determinação pontual e segura do universo temático das nossas preocupações, já o mesmo se não passa com a linguagem musical. Esta, ao evoluir e discorrer no tempo, utiliza os seus "fonemas" em associações criativamente caprichosas, quase sempre embebedadas pelo fascínio do neologismo e obrigatoriamente tão amplas nas possibilidades significantes, que guarda para si uma característica não única mas fantástica de conseguir dizer as coisas através do nada dito, libertando os ouvintes do discurso até ao ponto mais alto do seu querer compreender, evadindo-os de significados obrigatórios e podendo sempre encontrar razão válida de ser para a sua compreensão polissemântica do transmitido ou escutado.
Quanto à sintaxe e à morfologia o problema é o mesmo. Estas têm que obedecer a regras apertadas de sequencialização e formatação, para que uma das características fundamentais de qualquer linguagem, a funcionalização compreensiva, não saia lesada e incapaz. E lá diz o povo, com o seu sábio entendimento: "É preciso é que a gente se entenda!" . Se calhar, é por causa desta necessidade a curto prazo de nos fazermos entender e sermos entendidos, que o homem, sem saber por quê, precisou de criar a sua própria linguagem, aberta, livre e sem significado imediato ou obrigatório: a Poesia!
Consegue-se assim de imediato vislumbrar uma relação familiar e íntima entre a música e a poesia. Ambas, ao dizerem aquilo que querem, sem usarem para isso a circunstância concreta descritiva, mas a imagem, a evocação, o pressuposto, o equívoco, a sugestão, na construção desejada do caixilho sensorial, sensível e sensual, dão espaço ao auditor ou leitor para a elaboração de um "puzzle" semântico onde todas as conclusões são possíveis, acertadas e onde a criação artística se refresque e recrie na justa medida da capacidade do receptor.
Na música, para que tudo isto seja possível e consequente, quatro variáveis jogam uma cartada decisiva: a melodia, o ritmo, a harmonia e o timbre. Qualquer delas, por si só, são limitadas e até inconsequentes. Articuladas, levam por diante discursos de beleza ímpar e, apesar disso, nalguns casos, até eivados de significado. É tão evidente este contexto que vários autores lhe chamaram mesmo música descritiva. Pertencem a este domínio, evocados pelo conselho do acaso, os belíssimos trabalhos de C. Janequin (séc. XVI), grande parte dos madrigais de Gesualdo ou Monteverdi (séc. XVII), os poemas sinfónicos de Liszt (séc.XIX) ou as Bodas de Stravinsky, já neste século.
No entanto, e na sua vertente mais ampla, a música só quer dizer aquilo que nós queremos que ela diga, não deixando contudo de dizer, em simultâneo, aquilo que o compositor lhe determinou como mensagem. E não obstante a preocupação, continuada ao longo da história, de teóricos e analistas na definição de funções significantes para o discurso musical, cada vez mais óbvios e determinados, derivados de relações sintácticas funcionais, como por exemplo o binómio Dominante-Tónica; as cadências; os acordes modulantes, etc., cada vez mais a música as subverte e as deixa verdadeiramente ao dispor do querer interpretativo das novas gerações, dando absoluta razão a quem a defende como linguagem polissémica e aberta.
É, possivelmente, esta característica e riqueza do discurso musical que dificulta por um lado o fácil acesso à sua compreensão e por outro desespera aqueles que só anseiam por concisão, objectividade, quantificação matemática e certeza. É também este enquadramento, propício à diluição do verdadeiro imediato, que justifica talvez a velha designação de valor depreciativo "Saíste-me cá um Músico!"
Porém há quem muito a aprecie e até lhe copie o modelo na esperança de nada dizer ao ter que dizer a todos que sim. A linguagem política, por exemplo, copiou à justa tudo ou quase tudo o que atrás se disse. E como, por limitação, se têm que servir da escrita clássica, esta concreta e monossemântica, preferem até, sempre que podem, não escrever mas declamar. Melhor, escrever no vento! Pena é que quase sempre a sensibilidade se escravize aos pés do patrão, o interesse superior.
É caso para, aqui sim, dizer com o povo à imagem dos músicos: Saíram-me cá uns políticos!...

Virgílio Caseiro


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